O Poder Executivo sancionou a lei 14.193/2021 estabelecendo que as sociedades anônimas poderiam administrar, como empresas, os clubes de futebol. O principal argumento para a justificação da nova legislação decorreu do estado de déficit permanente e crescente dos referidos clubes, muitas vezes concorrendo para o fim de entidades tradicionais, valendo notar que o futebol se inscreve como um dos pilares da cultura nacional.
À imagem de outros países que já contavam com diplomas legais semelhantes, pareceu aos mentores da ideia que a transformação dos clubes, entes sem fins lucrativos, em sociedades anônimas, representaria a panaceia para todos os males, o milagre que estancaria todas as suas dívidas. Tentativas anteriores de socorro aos clubes de futebol já haviam sido feitas, haja vista os programas de saneamento de dívidas, loterias e outros remendos assemelhados.
Partindo, reconheça-se, de raciocínio cerebrino, com apoio em malabarismos hermenêuticos, a nova legislação, imediatamente atraiu interesses financeiros, sendo certo que grandes grupos de capital estão por trás dos clubes já aderentes ao novo edito que, em alto e bom som, proclamam por seus arautos de sonhos que as dívidas trabalhistas antigas se constituíram em coisas do passado sem transferência das mesmas, para as sociedades anônimas substitutas. Este o marketing para a venda do produto. Ledo engano.
Antes de ingressarmos na apreciação da sucessão trabalhista, um perpassar breve sobre a lei referida, demonstra as incoerências, contradições e contorcionismos do aludido texto legal.
De plano, em provável ato falho, na parte genérica da recente lei, em seu artigo 2º §1º, I, está escrito:
"a Sociedade Anônima sucede obrigatoriamente o clube.................................................., bem como nas relações contratuais de qualquer natureza..................................."
para, no Parágrafo 2º, I, dizer com todas as letras:
"os direitos e deveres decorrentes de relações de qualquer natureza , estabelecidos com o clube.......................................... serão obrigatoriamente transferidos à Sociedade Anônima do Futebol”.
A palavra - obrigatoriamente - em se tratando de texto legal não é e nem pode ser inútil.
Ao bom entendedor meia palavra basta, diz o ditado.
Uma análise superficial dos textos acima transcritos, induvidosamente trás referência à sucessão das relações contratuais dos contratos de emprego dos atletas profissionais e dos direitos de tais contratos que obrigatoriamente são transferidos para a nova empresa. Desde logo, vale chamar a atenção de que os aludidos contratos, como é óbvio, se iniciam e geram obrigações, quer durante, quer no fim dos mesmos, somente se exaurindo plenamente com recíproca quitação.
O malabarismo do legislador, verdadeiro alquimista jurídico, se retrata nos artigos 9º e 10 do diploma que dizem, sequencialmente:
"A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ....................."
e :
"O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol................".
A partir de então os bacharéis de algibeira apregoaram aos quatro cantos que o passivo trabalhista dos clubes de futebol estava resolvido. Exemplo vivo disse respeito a jogador famoso credor, segundo a imprensa, de vinte milhões de reais que não aceitou a "proposta" de abrir mão de seu crédito e foi dispensado com larga folha de serviços, aduzindo o investidor fenômeno que a Sociedade Anônima agora constituída não lhe deve nada. Ledo engano. Do exclusivo ângulo trabalhista, como adiante se verá, a sociedade anônima é sucessora do clube.
A pretensão legislativa de dividir o passivo trabalhista, em podre (clube) e saudável (sociedade anônima), remetendo a primeira para o regime de execução centralizada, sem comunicação com a saúde financeira da segunda, representaria o triunfo da fraude e da má-fé que, mais do que conceitos, são pressupostos da legalidade dos atos jurídicos.
Como é curial no nosso país, os escribas de plantão sempre disponíveis para servir aos seus senhores e aos interesses diversos, douram a pílula com redações empoladas sem nunca ouvirem aqueles que poderiam contribuir para inibir a edição de regulamentos capengas, caso presente. Na espécie, teria sido de excelente alvitre, a oitiva, por exemplo, de qualquer integrante da Academia Nacional de Direito do Trabalho que iluminaria a norma e oporia as barras necessárias para impedir os equívocos e a ofensa aos princípios da sucessão trabalhista.
Como faria bem ao país, evitando questionamentos previsíveis, que os autores da lei tivessem lido a obra clássica de Evaristo de Moraes Filho - Sucessão nas Obrigações - para conhecer que a sucessão trabalhista é peculiar, com características próprias, sem similitude com a sucessão dos outros ramos do direito. A sucessão trabalhista é uma sucessão de pessoas e não de negócios. Citando Coviello, Mestre Evaristo, explana que" a sucessão trabalhista e a aquisição do direito é nada mais do que a união do direito a uma determinada pessoa..." vínculo, portanto, indissociável, entre o direito e o indivíduo, leia-se entre o direito já adquirido e o trabalhador.
Para a perfeita compreensão do tema, faz-se indispensável a leitura dos artigos 2º § 1º, 10 e 448 , todos da Consolidação das Leis do Trabalho, não revogados pela nova lei . A partida, para a exegese da questão, se encontra na leitura do parágrafo 1º , do artigo 2º. da CLT, assim:
"Equiparam-se ao empregador , para os efeitos exclusivos da relação de emprego, ................ as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos,.............que admitirem trabalhadores como empregados."
O caput do referido artigo 2º, fala que:
"Considera-se empregador a empresa individual ou coletiva que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite , assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços."
Tem-se, pois que em termos trabalhistas se denomina empresa em lato sensu todos os tipos de empregador, inclusive os clubes, exatamente para os fins das relações de emprego, consoante a ressalva do parágrafo 1º, do supra citado artigo 2º. Para não haver esquecimento vale repetir que os contratos dos atletas profissionais de futebol, firmados com os clubes são indiscutíveis contratos de emprego espécie formal de relações de emprego. Em resumo: no Brasil, contrariamente aos outros países, a nova lei não se amolda à legislação consolidada vigente não a derrogando e ao invés com ela se atritando e, portanto, a malferindo , a violando o que significa plena ilicitude.
Os artigos 10 e 448, declaram que os direitos dos empregados não serão afetados por alterações na estrutura das empresas, isto é, em regras trabalhistas, no caso alterações na estrutura dos empregadores. "A sucessão do empregador concretiza-se quando há uma substituição de sujeito na mesma relação jurídica" definição que se ajusta como luva na situação em exame. Serve aqui a lição de Eduardo Gabriel Saad, assim: ”... é oportuno ressaltar que, no contrato de trabalho, o intuitu personae restrito à figura do empregado, ficando à margem a do empregador; se essa característica fosse em relação a ambos os contratantes, impossibilitar-se-ia a sucessão de empregadores." Claro como água límpida.
Reconhecido por largo tempo como o maior doutrinador mundial do direito do trabalho, o mexicano Mario De La Cueva, lecionou, assim: "O patrão substituto adquire, em virtude da cessão da empresa, todos os direitos do patrão substituído e ao mesmo tempo, a totalidade das obrigações; a cláusula que se convencionasse em contrário seria nula, de vez que não podem ser derrogadas as leis de ordem pública, nem restringir-se os direitos de quem não intervém na operação de traspasse."
Um exemplo pode ser extraído da situação do atleta A, empregado do clube X, do qual era credor, transferido obrigatoriamente para a sociedade anônima Y. Sem sombra de dúvida, A poderá acionar X e Y, ambas incluídas no polo passivo, permitindo-lhe, se vitorioso, executar diretamente Y, posto que tratou-se de relação de emprego sem solução de continuidade na qual a alteração jurídica dos empregadores não poderia afetar o seu direito.
A prosperar o discurso dos novos acionistas cujo único interesse, ainda que legítimo, é o lucro, estarão derrogados, por via oblíqua e de origem duvidosa, os artigos 2º, 10 e 448, todos da CLT. Do ponto de vista do direito positivo do trabalho a hipótese real é de uma mera mudança do nome fantasia de clube para sociedade anônima que não tem o condão de afetar, segundo a expressão legal, o seu direito já adquirido e incrustado no seu patrimônio econômico.
Em resumo: em termos de sucessão trabalhista a análise não deriva de empresas com objetos sociais distintos, como na situação examinada, uma a entidade sem fim lucrativo e a outra uma sociedade por ações. Não e não. O fundamental é a continuidade do empregador, independentemente da sua constituição formal e, em consequência, do rótulo de seu alvo empresarial. Alterada a vestimenta do mesmo empregador, opera-se a sucessão personalizada do tutelado, qual seja o trabalhador, consoante os dispositivos suso citados do estatuto laboral vigorante.
Outros dirão melhor, esse é o meu entendimento. A hipótese não é a mesma adotada em casos de intervenção ou de licitação pública (sistema bancário), quando se separam os débitos entre a empresa que já acabou e aquela que assumiu. Não e não. Em obediência à legislação trabalhista nacional, a mistificação dos dispositivos da lei 14.193/2021 que pretenderam afastar a sucessão trabalhista, aqui não se sustenta. É viver para ver, até que os primeiros processos cheguem à Justiça do Trabalho. Então, tirante o exame meritório da questão, poderão incidir inconstitucionalidades parciais nos artigos que, estranhamente, para dizer o mínimo, intentaram apagar a sucessão trabalhista dos princípios gerais de tutela nas relações laborais.
Janeiro de 2022.
João Baptista Lousada Camara.
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